segunda-feira, 14 de abril de 2014

O melhor texto do Grande Pedro Chagas Freitas

''Pediste-me que te escrevesse algo feliz, talvez o segredo para a abertura perfeita do teu sorriso, ou a maneira como cruzas as pernas como se não soubesses que és o fim do mundo e o começo de mim.

De qualquer maneira pediste-me que te escrevesse algo feliz e o que me ocorreu foi contar-te que vive uma gaivota na ponta dos meus dedos, não sei o que isto pode significar mas é o que sinto e é tão bonito e voa, e no fundo é isso o que nos une, algo que eu e tu não sabemos mas que é o que sentimos e é tão bonito e voa.

Podia também falar-te do silêncio que nos junta, tu deitada ao meu lado, eu escrevo, lá dentro os gatos estão estendidos no sofá ao sol, em cima e em baixo há vizinhos que fazem coisas que fazem barulhos, lavam a loiça, arrumam a casa, falam entre si e vêem séries na televisão, mas acontece que estamos neste quarto, a luz apagada e só eu e as minhas palavras para ti, a cama desgovernada, o cobertor bem apertado junto ao teu pescoço, a tua deliciosa necessidade de encostares a tua pele na minha para conseguires dormir, uma ausência total de palavras, e agora chegaste-te outra vez mais para mim, que prova de felicidade é maior do que esta?

Sei que um dia vamos morrer e isso dói, sabes?, sei que vamos cair de podres também, a pele, estes corpos que agora se encostam, vão ficar flácidos, posso até ficar ainda mais rezingão e tu ainda mais teimosa, vê lá tu, e o que resta quando as pessoas deixam de valer pelas peles e pelos corpos é o que define as pessoas, algumas ficam insuportáveis e feias, porque tudo o que tinham se está a ir, e depois há as outras, as que continuam para além do que perderam, ganham novas vidas à medida em que esta termina, deixam de ter a pele e o sonho, mas ficam tão lindas, os olhos profundos, têm histórias para contar, dizem a sabedoria de quem já viveu muito e acredita viver outro tanto, o mais bonito da beleza é não estar só naquilo que os olhos vêem.

Gostava que fôssemos dois velhos adolescentes, ficas já a saber, gostava de acordar todos os dias ao teu lado e olhar-te durante longos minutos só para saber que estavas e respiravas, ao meu lado como sempre ao meu lado, de seguida íamos encostar as peles acabadas uma na outra, eu ia beijar-te levemente, sentir que os teus lábios ainda existem, dizer-te o amo-te mais profundo que alguém pode dizer, e adormecer de novo pela manhã dentro, os corpos dobrados pelo tempo e pela vontade de procurar o outro para aguentar,
à tarde iríamos passear, descobrir o que a cidade tem de novo para nos mostrar, falar com as pessoas que nos amam, os filhos, os netos, provavelmente até bisnetos, perceber que todos os dias somos jovens da nossa existência, e finalmente regressar a casa, há palavra mais bonita do que essa?, a nossa casa, o jantar que faríamos a dois, eu a descascar as batatas e as cenouras, a cozinhar o arroz como tu gostas e como eu aprendi a fazer só porque tu gostas, tu a dares o tempero que só tu sabes dar, podíamos até jantar à luz das velas, dois velhinhos apaixonados e um jantar romântico,
haveria depois o sofá, um filme de jovens belos que se amam, só para nos podermos imaginar outra vez como quando nos conhecemos, a vida toda pela frente, e enfim a cama, eu e tu e a nossa vida toda debaixo dos lençóis, eu a aconchegar-te o cobertor junto ao pescoço, os nossos pés frios a aquecerem-se juntinhos, e se a morte chegar que seja aí, quando estou contigo e penso que valeu a pena andar tantos anos a construir um momento assim.

Pediste-me que te escrevesse algo feliz e eu lembrei-me de nós, há lá felicidade maior do que essa? ''

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